terça-feira, 19 de abril de 2011

Uma Roda de Choro no Bar do Cabral


Dia 20 de setembro de 2010, segunda-feira. São 19h e estou chegando no Bar do Cabral, na esquina das ruas Herval com Palmira, no bairro Serra, em Belo Horizonte, onde está para acontecer uma "roda de choro". O cavaco já está sentado (1) à mesa reservada para os músicos, montando a aparelhagem de som. Vou cumprimentá-lo. Um amplificador ativo e uma pequena mesa de poucos canais são usados pra tentar igualar o volume dos instrumentos e "salvar" os que não conseguem competir com o vozerio do bar (como o violão por exemplo).

Um frequentador do bar vem cumprimentar o cavaco e pergunta, com um sorriso de expectativa: vai ter "choro" hoje? Pareceu feliz com a confirmação e voltou à sua mesa. Eu cheguei com bastante fome e fui logo ao balcão. Pedi o que de mais típico havia no bar: pastéis de carne e uma dose de cachaça.

Enquanto os outros músicos não chegavam, conversamos [eu e o cavaco] sobre outros eventos de choro, como a 5ª edição do Festival Nacional de Choro – que era esperada para fevereiro de 2009, mas por falta de patrocínio viria emfim a ser realizada em outubro deste ano [2010] – e a comemoração do aniversário de seis anos do grupo Piolho de Cobra, à qual disse [o cavaco] ter comparecido, demonstrando grande satisfação em ter dado "canja" junto com seu amigo do bandolim que ainda está para chegar.

Agora outros músicos vão chegando: um 6cordas, um 7cordas, um sax, um pandeiro, outro pandeiro, o bandolim... todos do sexo masculino, com idade variando entre 20 à 40 anos.

A roda de Choro sempre foi uma espécie de “clube do Bolinha”, haja vista o livro do Animal que, entre centenas de nomes cita pouquíssimas mulheres, sendo que a única musicista citada, pra variar, foi a Chiquinha Gonzaga (2).

A predominância masculina nas rodas de choro poderia ser verificada a partir de um simples levantamento estatístico. Mas um crescimento progressivo, durante esta última década, do interesse de mulheres musicistas pelo choro, faz da ausência delas praticamente uma exceção, esta noite (3).

O livro de Alexandre Gonçalves Pinto (o Animal), ao qual Henrique Cazes se referiu acima, chama-se O Choro: reminiscencias dos chorões antigos, escrito em 1936. É uma obra literária bastante citada, por conter crônicas e perfis de uma série de personagens do choro, mas também muito criticada por ser mal escrita, além de conter opiniões muito parciais sobre seus personagens – o que a destituiria de qualquer credibilidade historiográfica, ou científica, a priori. Mas este seria, talvez, o maior equívoco de uma crítica como essa, pois já no prefácio o próprio autor nos adverte que 
[…] não tem a pretenção de mostrar erudição, […] tão simplesmente em linguagem dispretenciosa [sic] […] são chronicas [sic] do que se respirava no Rio de Janeiro neste período [1870] desde o tempo de João Minhoca, da Lanterna Mágica do Chafariz do Lagarto, […], o autor só teve por fito recordar, que é um novo sentir e tornar a viver […] (4).
Animal apenas registrara informalmente suas memórias. Assim, mesmo que as informações contidas no texto não tenham credibilidade científica, elas podem ao menos constituir um ponto de partida para investigações historiográficas adjacentes.

Cada um que chegava, cumprimentava a todos da roda. Alguns, ao me verem sentado à uma mesa à parte, gesticulavam como que perguntando se eu havia trazido o violão ou a gaita. Explicava-os então que estava realizando uma pesquisa e que precisava ficar de fora a maior parte do tempo.

Após cerca de 20 minutos conversando, afinando seus instrumentos e equalizando a amplificação da aparelhagem de som, começam – o bandolim (solo), o pandeiro, o cavaco fazendo o “centro”(5), o 6cordas e o 7cordas – a tocar primeira música, que é

… Migalhas de Amor (Jacob do Bandolim)(6)

Alguns frequentadores já esperavam sentados, com seus corpos sugestivamente voltados para onde iria acontecer a roda de choro. Ao terminar a música quem, por estar atrás do balcão, aparentava ser gerente do bar – que, por conveniência, chamarei de "gerente" daqui por diante – incita palmas, mas não tem muito sucesso. Murmura, então, algo que não entendo e volta aos seus afazeres, aparentando certa indignação. Já os músicos parecem indiferentes quando às palmas, mas satisfeitos por terem, enfim, começado a tocar.

… Atlântico (Ernesto Nazareth)

Esta música é solada, não por acaso, pelo bandolim, pois “foi Jacob Pick Bittencourt (o Jacob do Bandolim) quem trouxe as músicas de Nazareth para o universo do choro”(7). Assim muitas das músicas de Nazareth tornaram-se parte do repertório dos bandolinistas do choro.

O interior do bar é pequeno. A área dos frequentadores (excluindo a área atrás do balcão) tem cerca de 3x3m e cabe praticamente duas pequenas mesas unidas (reservadas aos chorões) com cerca de dez cadeiras ao redor, além de duas mesas encostadas na parede oposta ao balcão, com duas a três cadeiras cada. A maioria dos frequentadores fica na área externa do bar, em mesas montadas na calçada ou em pé. Numa das paredes internas há um quadro feito com dezenas de caricaturas, que seriam atribuídas à alguns dos frequentadores mais típicos daquele bar.

Novamente, ao final da música o "gerente" tenta incitar palmas, dessa vez com menos ânimo. A maioria dos músicos ainda parecem indiferentes. Enquanto isso, amigos que chegaram durante a última música aproveitam os intervalos para cumprimentar à todos da roda. Há muita cordialidade.

… Numa Seresta (Luis Americano)

Alguns recorrem à partitura – geralmente os solistas – outros não – no caso dos acompanhadores. Apesar de não saber tocar esta música "de cor", nem haver ali uma harmonia desta, cifrada naquele tom, o 7cordas arrisca acompanha-la “de ouvido”. Já o 6cordas – que se disse ainda na condição de iniciante – prefere não tocar desta vez. De vez em quando os acompanhadores se perdem na harmonia, mas nunca interrompem o ritmo, fazendo, muito provavelmente, com que alguns dos “deslizes” passem desapercebidos para os ouvintes leigos. Mas a cada volta ao "A", acerta-se mais e parece que, assim, eles aprendem a música tocando. De fato, muitos chorões ressaltam a
[…] importância fundamental […] da freqüentação assídua de rodas de samba e de choro - de um aprendizado, portanto, misturado com a prática […] enfatizavam o tipo de habilidade necessária para um bom desempenho numa roda: capacidade de transpor em tempo real, de acompanhar músicas que não se conhece especialmente bem, de improvisar contracantos nas cordas graves do violão […] etc. (8)
… Homenagem à Velha guarda (Sivuca)

As músicas geralmente são sugeridas por quem vai tocar a melodia. Mas sempre há uma certa negociação, com quem vai acompanhar e com os outros solistas – ou melodistas. Ao final desta música o 7cordas se dirige ao 6cordas e o incita à solar uma música. Mas ele não parece à vontade para isso ainda. A roda de choro – lembrando Sandroni, citado anteriormente – é reconhecida pelos chorões como um lugar de aprendizado. O estímulo dos colegas transformaria-se em um compromisso de estudo e o respeito às diversas condições é o que faria da roda de choro um lugar “democrático”. Henrique Cazes diz que:
[...] Uma roda de choro de verdade é aquela que mistura profissionais e amadores, gente que toca melhor e pior, sem nenhum problema. Dos tipos desagregadores, o mais perigoso é o “fominha”, que chega na roda carregando três instrumentos e quando começa a solar não pára mais. Esse tipo gosta de direcionar o repertório e sempre tira o encanto da festa (9).
A maioria dos frequentadores, também do sexo masculino, aparenta ter entre 40 e 60 anos. Alguns mais velhos que isso. Pouquíssimas mulheres frequentavam o local no dia e nenhuma das presentes estava desacompanhada. Lá por volta da terceira música o gerente já havia desistido de puxar palmas.

… Chorei (Pixinguinha)

Ao final desta música uma pessoa se dirige a roda e anuncia que uns garotos estão quebrando o vidro de uma caminhonete na outra rua. Dois dos frequentadores vão então conferir, pois aparentemente suspeitaram ser a caminhonete de um deles. Os dois solistas (bandolim e sax) também deixam a roda, pois parecia que o dono desta a caminhonete era conhecido de um deles. Mas a roda não parou por isso. Sem solistas o cavaco assume o posto e puxa a próxima.

… Desprezado (Pixinguinha)

O verbo “puxar”, neste contexto, significaria começar a música, numa forma de convidar os outros músicos à acompanhá-lo. Em alguns casos o violão ou o cavaco de centro também podem puxar alguma música como sugestão para o solista, mesmo que ela não tenha uma introdução característica – como a de Doce de Côco de Jacob do Bandolim, por exemplo – já que muitas são reconhecíveis pelos chorões apenas pelos primeiros acordes e pela rítmica. É importante também lembrar que a palavra "solista" é comumente utilizada nesse meio para designar quem toca a melodia – o melodista – e não um músico que tocará sozinho.

Em cima da mesa, garrafas de cerveja, refrigerante, partituras… O sax já está de volta e propõe a próxima. Os pandeiristas se revezam – toca-se sempre um pandeiro de cada vez.

… Sonoroso (K-Ximbinho)

Muitas das músicas que o saxofone propõe também são próprias do repertório deste instrumento – K-ximbinho, assim como Pixinguinha, era saxofonista. O Bandolim, que ainda estava fora, chega a tempo de "dividir o solo"(10), tocando o último A. Curioso foi o fato de que, como não sabia que a música já estava no final, ele ficou receoso de tocar a coda, esperando talvez que alguém começasse a solar a parte B ou C. Mas isto, ao final, foi uma motivo de diversão e não de repreensão.

… Proezas de Solon (Pixinguinha)

Esta é uma música bastante conhecida pelo público, por ser tocada praticamente em todas as rodas. Ao final dela, mais palmas – a esta altura, menos tímidas e mais generalizadas. Agora os músicos já se entusiasmam com a receptividade do público, mas um ou outro agradece as palmas com uma leve inclinação da cabeça. O público tampouco parece ficar ressentido com esta atitude. O único que demonstrara algum sinal de desaprovação até agora havia sido o “gerente”, mas com relação à falta de palmas.

A “roda” de choro não tem esse nome atoa: os chorões tocam ao redor da mesa, de frente uns para os outros, o que faz com que a maioria fique de costas para quem se põe como público. A esta altura começo a perceber melhor a diferença entre a relação dos chorões com este pretenso público, numo bar, e a relação de músicos eruditos com seu público, numa sala de concertos.

… Doce de Côco (Jacob do Bandolim)

Nesta, o cavaco também divide uma parte do solo o sax e o bandolim. Ao final, os pandeiros revezam-se novamente.

… Os 8 Batutas (Pixinguinha)

Ao final desta música houve até um grito de exaltação junto às palmas, agora mais calorosas. São 20:15 e o bandolim insiste para o saxofone que toque uma música que ele gosta muito. Ambos os violões lêem uma sequência de cifras que fora transcrita a partir de uma gravação pelo cavaco.

… Doce Melodia (Abel Ferreira)

Atentos, os acompanhadores não perdem nenhum breque. E ao final, muita exaltação principalmente por parte dos músicos que não estavam tocando, inclusive o bandolim que a pediu enquanto levantava-se para fumar do lado de fora.

… Brejeiro (Ernesto Nazareth)

Esta é uma música concebida por muitos chorões como propícia para o improviso. O bandolim e o flauta – o mesmo que toca o sax – solam juntos quase o tempo todo: ora um tocando a melodia e o outro contraponteando, ora os dois dobrando a melodia, na mesma oitava ou em oitavas diferentes.

Ao final alguém anuncia para o 7cordas não seguir a harmonia do A inteira, mas manter a alternância entre os acordes de tônica e dominante que há nos primeiros compassos. Então todos improvisam – como de costume, desde de uma clássica gravação por Jacob. (11)

Alguns frequentadores mais próximos da roda quase não desgrudam os olhos desta performance. Há momentos onde cada um improvisa alguns compassos sozinho e há outros onde o improviso é compartilhado com todos – neste último caso parece haver uma atenção especial para que um não corte a idéia do outro. Talvez por isso, neste momento todos se olhem mais, se escutam mais. Como era de se esperar, tendo em vista a atenção do pretenso público, houveram muitas palmas ao final.

… Pagão (Pixinguinha)

Após o Pagão, me chamam então para tocar. O 7cordas e o 6cordas me oferecem, ambos, seus instrumentos para a “canja”. O 7cordas insiste e eu, prontamente, aceito. Tocamos então...

… A vida é um buraco (Pixinguinha)
… Carioquinha (Waldir Azevedo)
… Chiquita (Waldir Azevedo)
… Noites cariocas (Jacob do Bandolim)

Após quatro músicas eu agradeço ao 7cordas e ele volta ao seu posto. Já são 21 horas e a roda ainda está muito animada.

… Catita (K-Ximbinho)

O bar já está cheio, há bastante gente consumindo. O “gerente” parece satisfeito com esta “atração musical”, que enche seu bar de fregueses.

… Peguei a reta (Porfílio Costa)

A segunda dose de cachaça já está fazendo efeito. Talvez como pesquisador eu não devesse beber cachaça durante a pesquisa para não debilitar minhas capacidades cognitivas, a menos que me oferecessem, pois isso alteraria minha percepção do fenômeno. Em alguns casos – de pesquisa etnográfica – uma desfeita poderia influenciar na relação do pesquisador com os sujeitos pesquisados. Em contrapartida muitos dos sujeitos em questão [os chorões] também consumiam bebida alcoólica, o que, de certa forma, até me deixaria num estado de consciência semelhante ao deles.

Alguns, então, explicam a introdução da próxima música para o 6cordas, pois esta em especial seria a função do violão – muito provavelmente desde a consagração de outra famosa gravação de Jacob.

… Santa morena (Jacob do Bandolim)

Um velhinho admirava, com olhos fixos e a boca aberta esta música, que é sempre muito louvada pela audiência. Em compasso ternário, variando a acentuação com binário composto, ela causa um contraste com todo o repertório da roda por ter uma uma sonoridade que lembra o flamenco.

Durante esta música alguém anuncia: "Ó o B!". Parece comum, nas rodas de choro, os solistas anunciarem a forma em voz alta, quando a música é menos conhecida ou quando este decide mudar sua forma arbitrariamente. Mas quem mais anuncia a forma durante toda a música parece ser o 7cordas. E ele faz isso musicalmente, em geral com uma baixaria (12) sobre a dominante da próxima parte – B, C, A2, etc. Talvez, este seja um dos motivos pelo qual são raríssimos os choros que não apresentam modulação entre as partes, pois este tipo de “código” facilitaria a comunicação musical numa roda de choro. Muitas palmas ao final e, depois de algumas sugestões, o 7cordas é quem “puxa” a próxima música...

… Assanhado (Jacob do Bandolim)

"Vamos fazer mais lentinho como o Época de Ouro!", disse o bandolim. O 7cordas prontamente reduz o andamento e a música continua. Como em Brejeiro e Santa Morena fica evidente agora, com esta referência ao andamento, a consagração ou mesmo “canonização” de alguns arranjos.

Vale notar que muitas das “versões” feitas por Jacob tornaram-se referência para os chorões, basta ouvir gravações realizadas posteriormente por outros intérpretes do choro. (13)

O bandolim, então, emenda em pot-pourrie o Brasileirinho de Waldir Azevedo. Ele toca olhando pra cima, mas aparentemente sem foco. Isto evidencia sua concentração, pois neste momento ele interpreta o tema com bastante liberdade rítmica: ele está improvisando! Henrique Cazes diz que
“A improvisação do Choro é mais rítmica e mais próxima do material temático do que as melodias criadas livremente em cada chorus no jazz”. (14)
O que não quer dizer que só exista esse tipo de improvisação no choro. Em 2008, Paula Veneziano Valente escreveu um artigo no qual ela aponta pelo menos dois modelos de improvisação no choro: um “vertical” e outro “horizontal”, respectivamente atribuidos à Pixinguinha e à K-ximbinho (15). As improvisações de K-ximbinho teriam, segundo suas análises, uma clara influência da música norte americana (especificamente do jazz), enquanto as de Pixinguinha estariam mais voltadas para as raizes do choro (16). Mas o carioca Maurício Carrilho – violonista, chorão, pesquisador e fundador da Escola Portátil de Música – já havia dito em 1998, numa entrevista à Ozéas Duarte e Paulo Baía, que
[…] a improvisação do choro é tão livre quanto à do jazz. O Hermeto entorta bastante, faz loucuras; o Tom Jobim fazia um choro mais comportado; o Armandino coloca um sotaque meio pop. E todos estão tocando choro […] Não têm nenhuma proibição, balizamento, regras. Só tem que dar o sabor do choro. Para não deformar, tem que guardar a alma, conhecer sua cultura, dominar a tradição, senão vira outra coisa. (17)
Depois de terminar em andamento acelerado, como de costume no Brasileirinho, o cavaco diz: "vamos uma mais lentinha aí!", como quem pede um descanso. Repetem então a música

… Doce de Côco (Jacob do Bandolim)

O 6cordas, aproveitando a oportunidade [por ser uma música repetida], arrisca uma inovação, realizando a sequência de acordes da introdução com o bordão em pedal na tônica. Talvez por isso os solistas tenham demorado mais compassos do que o habitual para começar o tema, pois alguns tinham no rosto um sorriso de surpresa e contemplação. Pareciam estar curtindo tanto que esqueceram de começar o tema. Então, o bandolim e o sax entram solando juntos, mas bandolim cede cordialmente e o sax continua.

Depois da repetição de Doce de Côco, são tocadas algumas músicas novas. A maioria, pelas características que pude observar, eram polcas e choros propriamente. Na verdade, estas músicas são “novas para mim” ou por não serem comumente tocadas naquela roda, por aqueles músicos, pois muitas já têm mais de meio século. O cavaco então sai pra um descanso e o pandeirista assume seu posto. Pela minha experiência em outras rodas, este revezamento entre os instrumentos parece ser uma prática comum. Assim, uma roda pode durar a noite inteira. E o repertório parece não acabar, muito menos a vontade dos solistas.

… 1x0 (Pixinguinha)

Agora, o 7cordas sai para ir ao banheiro e novamente me oferece seu violão para subsituí-lo. Eu já estou um pouco receoso, pelo grau de embriaguês que eu apresento no momento, mas enfim aceito. E começam as saideiras. Há uma preocupação com a hora, pois o bairro é residencial e uma lei conhecida como “lei do silêncio” proibe a música nestes locais após as 22:00 horas. Mas, ao que parece, se não houvesse este impedimento a roda aconteceria indefinidamente, até o repertório dos solistas acabar ou mesmo o bar fechar – como cheguei a presenciar muitas outras vezes.

… Na Glória (Raul de Barros)
… Benzinho (Jacob do Bandolim)
… Machucando (Adalberto Azevedo)

Enfim, agradeço novamente ao 7cordas, que retoma seu posto para a última música.

… André de Sapato Novo (André Victor Corrêa)

Os músicos e os frequentadores do bar se divertem com as citações nos breques da parte A desta música, que é repetida várias vezes ao final para que cada músico tenha a oportunidade de fazer sua citação. Algumas delas provém de gêneros muito além do universo do choro, como do rock, por exemplo, quando citam o motivo de Smoke On The Water da banda estrangeira Deep Purple. Mais uma saideira – a definitiva desta vez.

… Sonoroso (K-Ximbinho), novamente.

Já são 22h15min agora e a roda definitivamente acaba. Não demora nem 5 minutos e a maioria dos frequentadores paga suas contas e vai embora.


CONSIDERAÇÕES “INICIAIS”

Este exercício de etnografia suscitou-me algumas hipóteses. Parece que as relações que surgem neste encontro estariam bastante relacionadas com o significado da roda de choro para três "atores" principais: o gerente do bar, os frequentadores e os chorões.

O gerente: teria um ponto de vista fundamentalmente comercial, onde a roda de choro representaria “mais consumidores, mais lucro”. Talvez ele compreenda a roda de choro como um show musical, um atrativo para os frequentadores do seu bar e, como contrapartida, ele recompensa os músicos com cortesias, como bebidas, comidas ou mesmo couvert e cachês. Talvez, por isso ele incite as palmas.

Os frequentadores: constituiriam, em sua maioria, um pretenso público, que vai ao bar na expectativa de apreciar a música dos chorões – como aquele frequentador que foi cumprimentar o cavaco perguntando se haveria choro naquela noite – ou que está ali ocasionalmente.

Os chorões: segundo algumas conversas informais, eles fariam a roda de choro ali ou em qualquer outro que tivesse bebida, petiscos ou, até mesmo, couvert em troca da atração que a roda representaria para o bar. O compromisso dos músicos não seria nem com o bar, nem com os frequentadoes, mas com a própria roda de choro – com a música. O fato de estarem ganhando pra tocar seria um mero detalhe (que, no entanto, não deixaria de ser importante no final do mês), o que faz com que o músico neste contexto seja um profissional diferente, que gozaria de muito mais liberdade que outros funcionários do bar, como o garçom ou o cozinheiro. Ao contrário dos frequentadores [o “pretenso” público], o chorão neste contexto parece profissionalmente “despretensioso”.

NOTAS
1 É comum referir-se ao músico pelo instrumento que ele toca, por exemplo: “callado foi um flauta de primeira grandeza” (PINTO, 1936, p.11).
2 CAZES, 1998, p.114.
3 Uma fonte possível para este levantamento seria, por exemplo, registros das edições do Festival Nacional de Choro, da EPM, que poderiam até, pela natureza do evento, demonstrar a abrangência deste interesse em nivel nacional.
4 PINTO, 1936, p.9.
5 Fazer o “centro”, neste caso significa tocar apenas o acompanhamento, o que distingue esta da função do solista.
6 A autoria das músicas não foi criteriosamente verificada para este trabalho. Estas informações autorais foram colhidas em sua maioria da enciclopédia virtual Wikipédia.
7 NASCIMENTO apud CÔRTES, 2006, p.2.
8 SANDRONI, 2000.
9 CAZES, 1998, 111.
10 “Dividir o solo” significa compartilhar com outro solista a forma da música. Solistas alternam-se entre as partes e, de vez em quando, tocam duas partes consecutivas, mas nunca mais de duas quando estão “dividindo” dois ou mais solistas.
11 CÔRTES, 2005, p.25-26.
12 As “baixarias” seriam as linhas melódicas que o violão executa nos bordões, ou seja, nas cordas graves.
13 CÔRTES, 2006. p.70.
14 CAZES, 1998, p.125.
15 VALENTE, 2008, p.82.
16 Ibidem, p.86.
17 CARRILHO, 1998.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BASTOS, Marina Beraldo; PIEDADE, Acácio Tadeu. Análise de improvisações na música instrumental: em busca da retórica do jazz brasileiro. Revista Eletronica de Musicologia – volume XI, setembro de 2007.
CARRILHO, Maurício. Choro: continuidade e renovação. Entrevista cedida à Ozéias Duarte e Paulo Bahia. In: Revista Teoria e Debate (revista online), no 37, 1998.
CAZES, Henrique. Choro: do quintal ao municipal. São Paulo : Editora 34, 1998.
CÔRTES, Almir. O estilo interpretativo de Jacob do Bandolim. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas - Instituto de Artes, 2006.
PINTO, Alexandre Gonçalves. O Choro: Reminiscências dos chorões antigos. Ed. Fac-similar 1936. Rio de Janeiro: Funarte (Série MPB Reedições), 1978.
SANDRONI, Carlos. “Uma roda de choro concentrada” - Reflexões sobre o ensino de músicas populares nas escolas. Artigo. Universidade Federal de Pernambuco, Departamento de Música. In: IX ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL 2000. Anais... Belém, setembro de 2000.
VALENTE, Paula Veneziano. Horizontalidade e Verticalidade: dois modelos de improvisação no choro brasileiro. Artigo. XVIII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação (ANPPOM). Anais... Salvador, 2008 . p. 82-86.