domingo, 18 de abril de 2010

Saber tocar mais de um instrumento, por quê?


Por que aprender a tocar mais de um instrumento se há tanto para aprender com um apenas? Por que gastar tempo com um instrumento novo, "do zero", se você ainda não for "bom o bastante" no instrumento que você já toca? Vou começar comentando esta última expressão entre aspas. Ser "bom o bastante" é, além de subjetivo, muito pessoal (ou ao menos deveria ser!). Bom o bastante para quê? Bom o bastante para 'quem'? Se você é músico, seu interesse em tocar um instrumento musical é fazer música ou conquistar com ela um determinado status social (ou profissional)? Não sejamos hipócritas: as duas coisas, é claro! Mas seja sincero consigo mesmo: qual das duas pesa mais pra você?

Se o seu objetivo for status profissional como instrumentista, especialista em um determinado instrumento, a pergunta que você deveria fazer então é: devo ser bom o bastante para "quem"? Para quem você deseja que te chame para trabalhar, seria o mais sensato a responder, neste caso. Mas, independente de ser músico profissional, o que significa ser bom o bastante para você? Conseguir se acompanhar tocando e cantando numa roda de amigos? Tocar musica clássica? Tocar uma música de nível técnico dificílimo? Para quê? Cada um tem um propósito. Se o seu for 'ser o melhor' em determinado instrumento, a didática mais apropriada inicialmente seria a dos Conservatórios, na minha opinião: sistemática, objetiva e pouco maleável, para que você possa alcançar, sem muita 'distração', um nível técnico tal que te satisfaça. Porém, se em determinado momento o seu vislumbramento com criação e apreciação dos significados musicais e extramusicais for maior que pela performance sugiro que comece a aprender outro(s) instrumentos. Vou explicar por quê.

Quando comecei a estudar choro percebi o quanto que, numa roda, os instrumentos se comunicam. O primeiro que notei, não à toa, foi o violão de 7 cordas. Ele fazia melodias nos bordões dialogando com a melodia principal. Fiquei maravilhado! Na época eu nem imaginava o nome, mas as "baixarias" eram como segundas melodias, quase constantes durante todo o choro. Como às vezes sobrava violonista na roda e a vontade de tocar era grande, decidi aprender o pandeiro para, na falta de um pandeirista, eu 'quebrar o galho'. Consequentemente, passei a 'perceber' melhor esse instrumento para entender o que eu deveria fazer quando eu estivesse nessa função. Notei que os pandeiristas não tocam necessariamente a mesma 'levada' do início ao fim. Eles 'brecam', eles acentuam notas e mudam a dinâmica completamente conforme a melodia ou conforme o acompanhamento, eles improvisam, enfim, dialogam o tempo todo com a música e com os músicos. É óbvio: são músicos! Não estão ali apenas para fazer a "caminha".

Assim, comecei à perceber que cada instrumento tem uma função vital na roda de choro, todos são importantes e todos se comunicam. Por isso é uma 'roda', onde todos se olham, todos se escutam, e podem até ter sotaques diferentes, mas falam a mesma língua: o Choro. Com o tempo entendi que tocar mais de um instrumento "pra quebrar o galho" é uma prática comum. Muitos violonistas tocam cavaco, muitos cavaquinistas tocam pandeiro... e por aí em diante. Os músicos se revezam, descansam e a roda pode durar horas sem ficar desinteressante. Aprender a tocar pandeiro então, passou a significar pra mim dominar suficientemente a técnica para não só manter o 'ritmo' durante toda a música (quebrando o galho), mas também ter condições de executar minimamente sua 'linguagem'.

Então, percebi que estas duas características básicas da função do pandeiro refletiram diretamente na minha performance ao violão, quando comecei a receber mais elogios pela minha mão direita. 'Eureka'! Não deve ser atoa que a mesma mão que aprendeu a 'ferir' a pele do pandeiro passou a agradar mais (modéstia à parte) no violão. Das rodas de choro (onde o pandeiro é geralmente representante solitário da percussão) pras rodas de samba, o interesse por outros instrumentos, como surdo e tamborim, foi natural e só acrescentaram na minha compreensão rítmica e concepção de música.

Todo músico que toca um instrumento melódico, já se questionou ou se questionará um dia sobre a importância de também tocar ou ter noções de um instrumento harmônico (um piano ou um violão, por exemplo). Entre os músicos mais experientes a opinião é unânime: é importantíssimo, porque uma melhor compreensão da harmonia facilita consideravelmente a performance melódica, principalmente durante uma improvisação. E o inverso? Um músico que geralmente é responsável pelo acompanhamento teria algum ganho aprendendo à tocar um instrumento essencialmente melódico? Vejamos então.

O violão é de certa forma um instrumento completo: pode-se usá-lo para acompanhar, tocar uma melodia ou até fazer as duas coisas ao mesmo tempo com certa dedicação e estudo. Mas geralmente quem toca violão "de ouvido" muito pouco pensa em notas musicais. É mais fácil (e comum) pensar em fôrmas, desenhos mecânicos da execução. Apesar de certas 'obrigações', a baixaria do violão de choro é essencialmente improvisada e obviamente de natureza melódica. Improvisar melodia só por fôrma é possível, mas demanda uma dedicação grande ao instrumento em especial e geralmente limita sua compreensão melódica àquela afinação ou ao sistema daquela família (de cordas ou de sopro). Assim a improvisação sobre uma sequência harmônica menos familiar torna-se arriscada, pois você poderia até saber que notas evitar para não soar "errado", mas de nada adiantaria, obviamente, se você não tiver velocidade de raciocínio para identificá-las 'de pronto' no seu instrumento.

Eu até arrisco, nas rodas, solar uma ou outra melodia (de cor) ao violão. Mas decidi há algum tempo me dedicar a um instrumento essencialmente melódico para ver o quanto isto acrescentaria na minha compreensão musical de maneira geral. Escolhi então a Harmônica (gaita) e, por tocar choro, havia de ser a cromática (com chave). Assim como o pandeiro, a harmônica é um instrumento de outra família (com uma mecânica completamente diferente), assumindo uma função diferente na performance (neste caso a de tocar exclusivamente a melodia). O que eu tinha de familiar? As notas musicais! O material musical eu já dominava (escalas, graus e harmonia característicos da linguagem). Eu só não tinha velocidade de raciocínio 'melódico'. Bastava então dominar a mecânica do instrumento novo. E, com respeito àquela outra expressão no início, quem estuda música nunca começa "do zero".

Desde que comecei a encarar o choro na harmônica (melodias difíceis num instrumento completamente novo) tive que dedicar todo o tempo (de estudo técnico) para este propósito. Teoricamente o violão, que ainda é meu instrumento principal, deveria sair prejudicado. No entanto, percebi uma maior desenvoltura nas minhas baixarias, sem qualquer esforço 'direto' ou seja, sem estudar violão. E só posso associar isto ao ganho significativo que tive na linguagem do choro, especificamente por hoje tocar um instrumento essencialmente melódico: a harmônica. Mas isso não quer dizer que eu não precise mais estudar violão, muito pelo contrário. Este ganho foi em compreensão musical. A técnica eu devo buscar todos os dias se possível, pois ser multi-instrumentista não é se contentar em tocar mal vários instrumentos. É ter que estudar três, quatro, cinco vezes mais ou aceitar que o caminho será mais longo até a competência técnica em todos eles.

Domínio da linguagem (por ter escutado, estudado e principalmente tocado muito choro), velocidade de raciocínio e compreensão da melodia, da harmonia, do ritmo e de todos estes parâmetros simultaneamente (pelo fato de estar familiarizado com todos estes instrumentos) são características que hoje me proporcionam boa compreensão, consciência e desenvoltura em todos os aspectos do fazer musical (Apreciação, Criação e Performance). É como se eu, através de cada instrumento, pudesse ouvir uma música com vários 'ouvidos' diferentes, dispostos em 'ângulos' diferentes. Tenho consciência de que não serei o melhor em todos estes instrumentos, pois, além de não ser mais meu objetivo desde a adolescência, eu precisaria de mais umas duas ou três encarnações no mínimo. Mas sei que como músico, de maneira geral, estou cada vez mais satisfeito.

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